Terra, direito fundamental dos povos indígenas: não há marco temporal para o que é originário e inalienável
Congresso em Foco
19/4/2024 9:35
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Após mais de um mês de protesto, comitiva da Apib se retirou da mesa de negociação no STF sobre o marco temporal. Foto: Maiara Dourado/Cimi
por Dom Leonardo Steiner*O Brasil se encontra, mais uma vez, diante de um desafio e de uma oportunidade histórica para avançar decisivamente na garantia da vida, dos territórios e dos direitos dos povos indígenas, primeiros habitantes deste espaço que hoje temos como país.A capacidade de persistência dos mais de 300 povos indígenas que hoje existem no Brasil, após um processo secular de imposição e de extermínio, e sua perspectiva ética de um horizonte aberto a caminho de uma sociedade plural e do Bem Viver, representam pilares fundamentais sem os quais não conseguiremos construir qualquer perspectiva de futuro como sociedade. Em 1988, o Brasil constituiu nosso marco fundamental de convivência, com a promulgação da atual Constituição Federal - e os povos indígenas contribuíram de forma decisiva para a configuração deste marco. Aqueles que na época eram considerados pelo Estado como incapazes e necessitados de tutela mostraram mais uma vez sua tenacidade política e sua força de mobilização em todo o país. Arrancaram do Estado o reconhecimento mínimo de seu direito a ser e a viver, de suas formas próprias de organização social, de suas línguas, costumes e tradições e de seu direito originário às terras que tradicionalmente ocupam. Entretanto, ao longo destes 35 anos, o Estado avançou muito pouco na efetivação destes direitos. Hoje, comunidades inteiras permanecem despojadas de seus territórios, acampadas na beira de estradas, sob a lona preta e à mercê de todo tipo de violências. A maior parte das terras indígenas ainda não está demarcada e muitas daquelas que já foram homologadas continuam sofrendo com a invasão e a exploração ilegal e predatória de seus bens.
O "marco temporal"
Ao longo destas décadas, grupos de grande poder econômico e político nunca deixaram de agir para derrubar, reduzir, limitar e impedir a efetiva garantia dos direitos conquistados pelos povos indígenas, particularmente seus direitos territoriais. E a última tentativa destes grupos para derrubar os direitos dos povos indígenas é o que veio a ser chamado de "marco temporal".Segundo esta tese, que se mostra imoral e falaciosa, só teriam direito a seus territórios aqueles povos indígenas que conseguirem demonstrar que se encontravam fisicamente naquele lugar na data de 5 de outubro de 1988 ou que estavam litigando, física ou juridicamente, a posse dessa terra. Aqueles que defendem essa tese ignoram todo o processo de extermínio e de esbulho dos territórios que se deu antes dessa data. Não só ignoram, mas pretendem, com o marco temporal, legitimar uma declaração de impunidade com relação a todas as atrocidades e violências cometidas historicamente contra os povos indígenas até outubro de 1988. Eles buscam apagar da memória o fato de que a mobilização dos povos indígenas em todo o país durante o processo constituinte, em defesa de seus direitos, é sinal inequívoco de que os povos estavam, sim, pleiteando naquele momento a devolução de seus territórios roubados e o reconhecimento de seus direitos originários. Em setembro de 2023, no âmbito do Recurso Extraordinário 1.017.365, dotado de repercussão geral (Tema 1031), o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou por ampla maioria que o marco temporal não existe e é inconstitucional. Neste julgamento, o STF mostrou a determinação devida na fidelidade ao desejo dos constituintes e, também, na compreensão do desafio que estava em jogo. No entanto, o marco temporal voltou recentemente à cena política através de uma lei ordinária aprovada pelo Congresso Nacional. Manifestação indígena na 18ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), em 2022. Foto: Maiara Dourado/CimiCom a promulgação da Lei 14.701, em dezembro de 2023, o Congresso Nacional retrocedeu todos os passos que até o momento tínhamos conseguido dar neste tema como sociedade. De forma impositiva, esta lei pretende fixar o chamado marco temporal como parâmetro para a demarcação de terras indígenas no Brasil, o que significa, na prática, inviabilizar a garantia desses territórios, anistiar as atrocidades do passado e impedir a possibilidade de futuro como país. Mais do que isso ainda: a lei abre os territórios indígenas a interesses econômicos de terceiros e retoma uma perspectiva colonial que atribui ao Estado o poder de julgar e definir os caminhos de vida que só aos povos pertencem. Na contramão do consenso estabelecido na Constituição Federal de 1988 e em expressa contradição com a decisão do STF, o Congresso Nacional afrontou a vida dos povos indígenas e faz retroceder o Brasil às épocas mais escuras e violentas de sua história. Que interesses particulares se escondem por trás desta decisão? A serviço de quem se legisla quando as leis são injustas e imorais? A quem interessa apagar a memória da violência e do esbulho, do extermínio e da opressão? Não existe marco temporal algum para direitos que são originários e imprescritíveis, fundamentais e inalienáveis.
O único caminho possível
A luta dos povos indígenas por seus territórios supera, eticamente, a ideia mesquinha da terra como propriedade e como recurso a ser explorado, parâmetro do modelo capitalista de produção e de consumo. Por isso é uma luta necessária e incontestável, imprescindível para todos nós. Uma luta que nasce e se nutre de uma profunda e densa dimensão espiritual, expressada de formas diversas por cada povo. A segurança dos territórios indígenas está intrinsecamente relacionada com a preservação da vida, da biodiversidade e das condições de futuro para todos. É o singular e profundo vínculo e sentido de pertença dos povos a seu território, como condição primordial de ser, que se configura como paradigma ético fundamental, alternativo e necessário.Hoje temos, como sociedade, um único caminho possível para avançar em direção a um horizonte ético e político de justiça e de garantia para a vida de todas e todos. Esse caminho passa, necessariamente, pela demarcação e homologação dos territórios indígenas, conforme o previsto na Constituição Federal; sem atalhos, sem arranjos, mas com determinação política. E isto obriga ao conjunto do Estado, aos Três Poderes, cada um em suas responsabilidades e atribuições. Na garantia dos territórios, livres de qualquer interferência e invasão, reside também o reconhecimento dos projetos de vida dos povos indígenas, na sua diversidade e pluralidade, de seus sistemas culturais próprios e de sua plena autonomia. Para isso, é fundamental que as instituições do Estado assumam sua responsabilidade e sua missão institucional, garantindo os direitos originários dos povos indígenas e declarando de forma iminente a inconstitucionalidade da Lei 14.701. É este o único caminho para retomar a senda de uma sociedade fundamentada no respeito, no diálogo, na justiça e no direito. É imprescindível que avancemos, como país, no caminho das políticas de restauração, de Memória, Verdade e Justiça. É urgente reconhecer - e não apagar - os crimes e atrocidades cometidas contra os povos indígenas deste país. É essencial, enfim, que o Brasil caminhe no reconhecimento da contribuição imensurável que os povos indígenas, como sujeitos coletivos de direitos e detentores de sistemas culturais próprios e de horizontes éticos insubstituíveis, representam para a preservação da vida e para a defesa de uma democracia sempre mais radical, a caminho do Bem Viver para todas e todos.* Dom Leonardo Steiner é cardeal, arcebispo de Manaus (AM) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].