Especial de natal do Porta dos Fundos reprodução/ Netflix [/reprodução]
A produção de um programa humorístico pelo Grupo Porta dos Fundos que teria sugerido uma eventual relação homoafetiva de Jesus e as reações negativas de muitos e até de um atentado a bomba contra o local Porta dos Fundos, nos convidam a uma reflexão sobre o respeito. Este, o respeito, é um dos eixos básicos da ética de qualquer cultura e também necessário para a convivência pacífica das diferenças dentro de um Estado Democrático de Direito.
>Bolsonaro teve ano de "agenda contra os direitos humanos", diz relatórioPara enriquecer a discussão que concerne também um ministroSTF que liberou o programa humorístico depois de ter sido proibido por outro juiz, convém propor as reflexões de um pensador que, mais do que ninguém, aprofundou a questão do respeito: Albert Schweitzer (1875-1965). Era oriundo da Alsácia, renomado exegeta bíblico e um reconhecido concertista de Bach.Em consequência de seus estudos sobre a mensagem e a ética de Jesus, especialmente o Sermão da Montanha, que dava centralidade ao pobre e ao oprimido resolveu abandonar tudo, estudar medicina e em 1913 ir para a África como médico em Lambarene (Togo), exatamente para aquelas regiões que foram dominadas e exploradas furiosamente pelos colonizadores europeus.Diz explicitamente, numa carta, que "o que precisamos não é enviar para lá missionários que queiram converter os africanos, mas pessoas que se disponham a fazer para os pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuam algum valor. Se o Cristianismo não realizar isso, perdeu seu sentido. Depois de ter refletido muito, isso ficou claro para mim: minha vida não é nem a ciência nem a arte, mas tornar-me um simples ser humano que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena que seja"(A. Schweitzer, Wie wir überleben können, eine Ethik für die Zukunft, 1994,p.25-26).
Em seu hospital no interior da floresta tropical, entre um atendimento e outro de doentes, tinha tempo para refletir sobre os destinos da cultura e da humanidade. Considerava a falta de uma ética humanitária como a crise maior da cultura moderna. Dedicou anos no estudo das questões éticas que ganharam corpo em vários livros, sendo o principal deles "O respeito diante da vida"(Ehrfurcht vor dem Leben).Tudo em sua ética gira ao redor do respeito, da veneração, da compaixão, da responsabilidade e do cuidado para com todos os seres, especialmente, para com aqueles que mais sofrem.Ponto de partida para Schweitzer é o dado proto-primário de nossa existência, a vontade de viver que se expressa:"Eu sou vida que quer viver no meio de vidas que querem também viver"(Wie wir überleben können,73). À "vontade de poder" (Wille zur Macht) de Nietszche, Schweitzer contrapõe a "vontade de viver" (Wille zum Leben). E continua :"A ideia-chave do bem consiste em conservar a vida, desenvolvê-la e elevá-la ao seu máximo valor; o mal consiste em destruir a vida, prejudicá-la e impedi-la de se desenvolver. Este é o princípio necessário, universal e absoluto da ética"(Ehrfurcht .52 e 73).Para Schweitzer, as éticas vigentes são incompletas porque tratam apenas dos comportamentos dos seres humanos face a outros seres humanos e esquecem de incluir todas as formas de vida. O respeito que devemos à vida "engloba tudo o que significa amor, doação, compaixão, solidariedade e partilha"(op. cit. 53).Numa palavra: "a ética é a responsabilidade ilimitada por tudo que existe e vive" (Wie wir überleben,52 e Was sollen wir tun, 29).Como a nossa vida é vida com outras vidas, a ética do respeito deverá ser sempre um con-viver e um con-sofrer (miterleben und miterleiden) com os outros. Numa formulação sucinta afirma :"Tu deves viver convivendo e conservando a vida, este é o maior dos mandamentos na sua forma mais elementar"(Was sollen wir tun, 26).Disso deriva comportamentos de grande compaixão e cuidado. Interpelando seus ouvintes numa homília conclama:" Mantenha teus olhos abertos para não perderes a ocasião de ser um salvador. Não passe ao largo, inconsciente, do pequeno inseto que se debate na água e corre risco de se afogar. Tome um pauzinho e retire-o da água, enxugue-lhe as asinhas e experimente a maravilha de ter salvo uma vida e a felicidade de ter agido a cargo e em nome do Todo Poderoso. O verme que se perdeu na estrada dura e seca e que não consegue fazer o seu buraquinho, retire-o e coloque-o no meio da grama. 'O que fizerdes a um desses mais pequenos foi a mim que o fizestes'. Esta palavra de Jesus não vale apenas para nós humanos mas também para as mais pequenas das criaturas"(Was sollen wir tun, 55).A ética do respeito de Albert Schweitzer une inteligência emocional com inteligência racional. Tudo o que impedir o respeito de uns para com os outros, enfraquece a convivência social. Ninguém tem o direito de constranger o outro com a falta de respeito. Todas as liberdades possuem seu limite, imposto pelo respeito.O maior inimigo da ética do respeito é o embotamento da sensibilidade, a inconsciência do valor fundamental do respeito ilimitado. Incorporando o respeito, o ser humano alcança o grau mais alto de sua humanidade.Se não respeitarmos todo ser, acabamos não respeitando o ser mais complexo e misterioso da criação que é o ser humano, homem e mulher, particularmente o mais vulnerável, o pobre, o doente e o discriminado. Sem o respeito e a veneração perdemos também a memória do Sagrado e do Divino que perpassam o universo e que emergem, de algum modo, na consciência de cada um.>Mais textos do Leonardo Boff Catarse