Antonieta de Barros foi professora, jornalista, e primeira paralamentar negra do Brasil. Antoniera combateu a discriminação racial através da educação e da construção de políticas públicas para a população negra. Foto:
Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina
Tradicionalmente, em nosso país, a universidade vem lidando com o conhecimento oriundo de uma visão de mundo branca, hegemônica e universalizante, que conduz a um processo de homogeinização dos diferentes e de perda das identidades culturais brasileiras, não situando o processo de formação pluricultural da nação como fator básico ou preponderante no processo educativo.Sabemos que as pessoas enxergam o mundo através de sua cultura, aproveitando os sentidos para codifica-lo. Os brasileiros suspeitam dos sentidos que não sejam a visão ou o tato, já que precisam ver para crer, pois afirmam que os olhos são o espelho da alma ou que uma pessoa estimada é bem-vista. Desta forma somos levados a construir o mundo real segundo os códigos da sociedade que fabrica ou modela o nosso corpo.Por conta dessa concepção, a Lei 10639/03, que está completando vinte anos e versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira, bem como a Lei 11.645/08, que torna obrigatório o estudo da história da cultura indígena e afro-brasileira ainda não conseguiram ser uma realidade efetiva no país por sofrerem a influência da concepção européia do outro, entendido como diferente e inassimilável. Cabe assinalar que estas leis não prevêem a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores (licenciaturas).Para o espirito burguês do Século 16, a supressão dos habitantes das Américas é uma forma de sublimar o outro que há em cada um, corpo morto, cadáver que um dia seremos. Desta forma, a morte é transferida, sendo projetada em outro ser, que pode ser morto, por não ser igual. Assim, com base na própria Bíblia judaico-cristã, que não aceitava outra fé como verdadeira, o europeu poderá usar e abusar do outro. Há, deste modo, uma aliança do cristianismo com o capitalismo, gerando todas as atrocidades cometidas contra negros e índios nas Américas. A Igreja, pela conversão e o capitalismo, por reduzir todos os seus valores ao dinheiro, vão acabar com as alteridades.O corpo passa a ser meio de produção e, desta ilusão, surge a sensação de autonomia, sendo que nela se edificou o individualismo burguês, gerador de um corpoprodutor, corpo-instrumento, que precisa ser treinado, modelado, disciplinado, fortificado. O outro passa a ser o corpo-dominado, que funciona como ferramenta, sendo corpo-alienado, que se troca por um salário ou corpo-mercadoria, vendido como escravo.O corpo do brasileiro perdeu o seu ritmo natural, na medida em que foi violado por condições histórico-culturais concretas. Sob o ângulo das classes sociais antagônicas, milhões e milhões de brasileiros são vistos como corpo-marginal, pois pertencem aos excluídos ou afastados dos bens e benefícios materiais e culturais do mundo capitalista.A Lei 11645/08, ao lidar com a pluralidade brasileira, demonstrou que cada grupo cultural criou o seu espaço do sagrado e do profano, do maravilhoso e do perverso. Desta forma, apesar do corpo do trabalhador ser maltratado por inúmeras horas fora de casa, com trabalho pesado e alimentação inadequada, aliados a pouco descanso, o segmento negro, indígena e mestiço, maioria da população do país, usa o corpo como meio de contato com a transcendência, com os ancestrais e os orixás, já que o negro e o povo originário rezam dançando. Segundo afirma Muniz Sodré, desde o século 16, através das estratégias da Rainha Nzinga (de onde veio a palavra ginga) o negro utiliza o balanço incessante e maneiroso do corpo, que faz com que ele se esquive e dance ao mesmo tempo, gingando, buscando seduzir o outro, envolvê-lo, enlaçá-lo, vencendo pela astúcia e malícia a força bruta.Na cultura negra, o corpo foi caminho da formação de uma maneira própria de ser, de se autoafirmar, onde, através da dança, se transmite o envolvimento emocional, o sentimento de raiz e tradição, bem como uma plasticidade reveladora de uma cultura de resistência, onde se apresentam movimentos de autopreservação e continuidade cultural. O corpo negro abriga o orixá - força cósmica, energia da natureza, estabelecendo comunicação direta entre o sagrado e o profano. O que este corpo cria de júbilo, de energia, produz uma profunda diferença cultural, que não poderia deixar de ser levada em consideração numa proposta de educação.A tendência da pluricultura que busca valorizar a cultura popular com a introdução das tradições negras e indígenas nos currículos escolares em todos os níveis de ensino nos mostra a necessidade de efetivação eficaz desta proposta, já que a pedagogia, tanto na cultura negra como na indígena, é totalmente iniciática, com uma didática específica que se funda no mito e no rito, elementos estruturadores dos valores e saberes dos grupos. Para tornar crianças e jovens competentes em vários sistemas culturais é preciso conhecê-los também de forma iniciática, numa metodologia que funciona desde dentro para desde fora. Livro Irê Ayó, de Vanda MachadoJá existem várias experiências exitosas neste sentido, como o Projeto Irê Ayo da Dra Vanda Machado em Salvador, resultado de sua pesquisa de Mestrado e Doutorado na Faculdade de Educação da UFBA. O estudo consistiu em escutar, vivenciar e compreender o pensamento africano recriados nos terreiros e bairros negros. Isto implicou na compreensão dos acontecimentos cotidianos e de como estes afetam a formação dos educadores da Escola Eugenia Anna, as crianças e a comunidade do terreiro Ilê Axé Opo Afonjá. Tal compreensão permitiu a Dra Vanda Machado uma reflexão teórica para uma epistemologia contemporânea que a conduziu a uma pesquisa participativa, uma pesquisa ação e um encontro significativo com sua história de vida, com o pensamento africano e com a construção do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó, sua realização e ressonâncias, segundo afirmação da autora.Os caminhos se apresentam e revelam a importância de tirar dos ombros a carga de pré-conceitos em relação ao outro, que é diferente porém necessário e tão importante como cada um de nós. Este é o maior desafio que os educadores brasileiros enfrentam. Precisamos procurar caminhos pedagógicos que viabilizem a produção intelectual acadêmica brasileira fora do sistema oficial de ensino, usando a riqueza da pluralidade cultural, gerando um novo professor para uma nova educação, seguindo os passos da Dra Vanda Machado.O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].