José Luis Oreiro e Rogério Carvalho *Na semana passada, muito se debateu sobre os impactos da extinção dos mínimos obrigatórios de educação e saúde. Aparentemente, o tema será retirado da PEC 186, afastando, em princípio, o risco de desmonte do financiamento da educação e saúde públicas. No entanto, é preciso discutir os demais dispositivos do texto, que piorarão sensivelmente o regime fiscal brasileiro.A previsão de equilíbrio fiscal intergeracional junto aos direitos sociais e de limites à dívida pública, a serem regulamentados por lei complementar, será especialmente nociva ao Brasil. É mais uma regra a se somar a um arcabouço fiscal rígido, sem paralelo no resto do mundo, composto pelo teto de gasto, resultado primário e regra de ouro. Para a União, a PEC também prevê que os gatilhos da EC 95 serão acionados quando a despesa obrigatória corresponder a 95% das despesas sujeitas ao teto. Em função do teto de gastos, a despesa deve ser reduzida em relação ao tamanho da economia até 2036, independente da arrecadação. Além disso, havendo frustração de receitas, a despesa tende a ficar abaixo do teto, dada a meta de resultado primário. Ainda há a regra de ouro, que prevê orçamento corrente equilibrado, o que é inviável na baixa do ciclo, quando há redução da receita. Tanto é assim que Reino Unido e Alemanha abandonaram a regra de ouro após a crise de 2008. Enfim, o regime fiscal brasileiro é estruturalmente acíclico e pró-cíclico "para baixo", implicando corte de investimentos e gastos sociais em meio à crise e agravando o quadro econômico e social.Com um limite de dívida, a rigidez fiscal será ainda maior. Em todo o mundo, a dívida pública vem se ampliando. Por exemplo, a Espanha tem dívida bruta de 123% e, mesmo não dispondo de moeda própria, adota regra segundo a qual o gasto cresce em linha com o PIB potencial, excetuando despesas como o seguro-desemprego.O Brasil é endividado fundamentalmente em moeda local e, por definição, não pode quebrar na moeda que emite. Atualmente, a dívida é rolada em condições extraordinariamente vantajosas. Segundo informações do Tesouro, em janeiro houve emissões recorde para o referido mês e o custo médio do estoque da dívida caiu para 8,29% ao ano, valor mais baixo da série histórica. Com juros baixos (e até negativos) nos países centrais, os juros internos deverão se manter em baixo patamar. Neste contexto, cai por terra o argumento da economia ortodoxa de relação entre aumento da dívida e elevação das taxas de juros dos títulos da dívida pública.Além disso, a dívida líquida do governo geral fechou 2020 em 67%, em torno da média de países em desenvolvimento **. A análise de sustentabilidade de qualquer país deve levar em conta a dívida líquida e, portanto, seus ativos. No caso do governo geral, o principal ativo é a Conta Única do Tesouro Nacional - CUT ***, cujo saldo em dezembro de 2020 foi de 19,6% do PIB, maior valor da série histórica, mostrando que o Tesouro está bem posicionado para lidar com os vencimentos da dívida pública. Isto é, o Brasil dispõe de condições favoráveis à expansão do gasto para combater a pandemia e recuperar a economia, mediante o aumento da dívida pública e a utilização dos recursos disponíveis na CUT (que implicarão, em algum grau, aumento das operações compromissadas para esterilizar a ampliação das reservas bancárias). A CUT é um passivo do Banco Central. O aumento de gastos públicos implica redução do saldo da CUT e lançamento de créditos nas contas dos agentes privados (por exemplo, beneficiários do auxílio emergencial e do programa emergencial de manutenção do emprego e da renda). Transforma-se, assim, o passivo não monetário (saldo da CUT) em passivo monetário, na medida em que os agentes passam a dispor de moeda para realizar gastos, que, com seus efeitos multiplicadores, gerarão renda e, em parte, reverterão em arrecadação pública.O déficit do setor público implica superávit do setor privado, contribuindo, pelo estímulo à demanda, para o aumento do PIB e das receitas tributárias. Sendo assim, de onde vêm as restrições para ampliação do gasto? É preciso ter clareza que os limites são autoimpostos pelo emaranhado fiscal vigente. A PEC 186 pretende aprofundar tais restrições, de maneira que o impacto do ciclo econômico sobre as contas públicas seja um instrumento para justificar a contenção de gastos, reduzir serviços públicos e até alienar ativos. Não é por outra razão que às regras bastante restritivas se sobreporia um subteto do teto (com vedações até mesmo para combater a pandemia, ainda que o teto seja cumprido), bem como um conjunto de medidas voltadas a conter o aumento da dívida. É como se transmutássemos a ideologia liberal em práticas institucionais que justificariam o ataque a serviços públicos. A rigor, o teto de gastos já é um indutor para o ajuste fiscal permanente, tratando-se de limite à despesa declinante em relação ao tamanho da economia. Convém lembrar que as despesas discricionárias têm sofrido redução real desde a instituição do Novo Regime Fiscal. Além disso, com a reforma da previdência, os gastos do Regime Geral de Previdência Social tendem a se estabilizar como proporção do PIB e os gastos de pessoal tiveram queda real entre 2019 e 2020.Ou seja, não há descontrole do gasto e o governo pretende usar a PEC 186 como chantagem institucionalizada: para pagar alguns meses de auxílio emergencial, pede em troca um regime fiscal que implodirá de vez a capacidade da política fiscal estabilizar a economia e financiar serviços públicos essenciais à população. O Brasil precisa da retomada imediata do auxílio emergencial e do financiamento de ações de combate à pandemia, por exemplo, garantindo recursos para o financiamento de leitos de UTI, que foi cortado pelo governo federal, mesmo com o aumento do número de pacientes de Covid. Em meio a mais de 10 milhões de casos e 250 mil óbitos, o resto é chantagem, às custas da vida, da fome e do desemprego, que já alcança 14 milhões de brasileiros.* José Luis Oreiro é economista e professor da Universidade de Brasília (UnB)Rogério Carvalho é senador pelo PT de Sergipe** Os economistas ortodoxos costumam alegar que, no Brasil, a dívida bruta do governo geral é elevada frente a outros países em desenvolvimento. No entanto, é preciso assinalar que estão duplamente equivocados, pois o critério mais relevante para atestar a situação fiscal é a dívida líquida (dada a importância dos ativos) e, além disso, o Brasil é o único país do mundo em que quase 20% da dívida bruta do governo geral no Brasil se referem a operações compromissadas, lastreadas em títulos do Tesouro Nacional alocados na carteira do Banco Central para regulação da liquidez da economia, sem correspondência direta com a questão fiscal. O projeto de Lei nº 3.877/2020, aprovado pelo Senado Federal, prevê, em linha com o que praticam países como os EUA, que o Banco Central poderá utilizar depósitos remunerados para a gestão da liquidez. Os depósitos remunerados constituiriam passivo do setor público, mas não seriam contabilizados nas estatísticas de DBGG.*** A dívida líquida do governo geral não computa as reservas internacionais, que são um ativo do Banco Central, contabilizado na dívida líquida do setor público, que foi de 63% em 2020.O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].Brasil pode virar Venezuela em um ano e meio, diz Guedes