Esta não é apenas uma narrativa mítica. Mas devo adiantar que contar história é viajar no tempo combinando pesquisa, fundamentos, mitos, fatos históricos e ser, minimamente, conhecedor de uma linguagem simbólica capaz de integrar uma literatura para quem se propõe iluminar, transformar a própria mente com uma razoável percepção de si e da sociedade. Eu conto sobre demandas comuns, e até da condição humana ou de uma comunidade que prefere levar em conta a pregnância ancestral e a capacidade de enxergar caminhos que favorecem a um destino comum, no entanto dialógico.Vale considerar que o desconhecimento da teia social e os efeitos produzidos por poderes instituídos levam dúvidas para o que vem sendo chamando de crise moral ou crise ética não apenas como violação de direitos, valores e regras de apagamento de memórias como ser arte de Exu. Mas como arte de Exu? Foi Exu que presenteou a humanidade através de Oxum com o jogo que diviniza os mistérios da vida. É através deste orixá que vamos nos comunicando com todas as entidades, fazendo-lhes oferendas que alimentam as possibilidades, a vida e a força do axé.> Uma objetiva(o), um olhar, muitas escolhasNão seria esta a raiz do princípio do mobilismo heraclitiano de onde "tudo flui"? Exu não só está relacionado com os ancestrais femininos e masculinos, mas também com tudo que existe e que se imagina existir no universo, porque tudo é vivo. Ele não pode ser aprisionado em nenhuma categoria. Ele é parte da natureza, do ser humano e da humanidade nas suas ambiguidades e contradições e em seus enigmas mais imponderáveis.Isto denota que o mundo é um jogo de possibilidades interpretativas, uma eterna vagueza de jogos existenciais. E o infinito aqui não tem nada a ver com o mundo teologicamente acabado, pelo contrário, fala de um mundo em ebulição, mundo de infinitas formas, ofertadas ao perspectivismo humano. Exu é o princípio, o meio e o fim. Exu está na árvore, no rio, no peixe, no pássaro, na pedra e em todo ser vivente. Como elemento energético, dinamizador e plasmador, ele é o que desenvolve, mobiliza, faz crescer, transformar e comunicar no incessante fluxo das vivências cotidianas entre o Orun e o Aiyê. Ele é o tudo e o nada. Seu jeito buliçoso de existir encontra ressonância no pensamento filosófico de um universo sem lógica ou um universo de lógicas infinitas, um universo polilógico. > Samba, resistência e sociedadeMas qual seria a relação entre esta prosa, que pode até ser considerada sacrílega, e o jeito político de me fazer entender? Onde já se viu criar-se um diálogo filosófico para compreensão do mundo incluindo Exu? Teria este diálogo alguma possibilidade de favorecer a implicação formativa de outra epistemologia para compreensão de nós mesmos? Adianto que esta disposição não despreza nenhuma outra interpretação no caminho de compreensão da sociedade e do mundo e este é o lugar de onde falo. Se uma lei se impõe como lugar de direito para o afrodescendente na consideração pela sua cultura, mais importante ainda é a urgência de criar-se uma linha de fuga que possa acolher outra epistemologia, outro contorno para um jeito de cuidar de uma nação de diferentes. Urge que sejam reabilitados e dinamizados valores ontológicos, vivenciais num mundo aberto e dialógico. Exu é um ser que desvela o que é para ser desvelado. Ele é livrecomo o ar que o representa no espiral dos redemoinhos e se movimenta na sua flexibilidade e mutabilidade constantes, jaculando o seu sopro transformante em qualquer direção. Com todo respeito a este precursor dos movimentos dinâmicos dos caminhos virtuais, ele pode até ser comparado aos seres humanos. Mas não a todos. Só aqueles que jogam com o poder da imaginação e sabem onde, como e quando interferir. Aqueles que agem, como cantou Raul Seixas, como "os olhos do cego ou como a cegueira da visão," os que sabem tencionar poetizando e jogando com a vida. Os que se entregam a uma ressonante gargalhada. Aqueles que não param de traçar caminhos novos. Caminhos de encontros, mesmo que sejam encontros transitórios. Exu se desloca com a velocidade da luz ou com o cuidado protetor de uma dona de casa. É ele quem desmancha, com habilidade de artesão, o que precisa ser desmanchado ainda na sua imanência. Ele constrói do nada o que precisa ser construído. Este é um aspecto onde a complexidade do tempo e do espaço mítico pode regar a ideia de um universo em construção. Este é um dos princípios da incerteza que é essencial para a criação de possibilidades e transformações. Possibilidades que incluem a lógica do arbítrio humano e a corporeidade como fundantes de infinitos caminhos para uma vida comum e solidária. > Justiça para João Alberto Silveira Freitas - Não seremos a carne mais barata do CarrefourO pensamento ontológico africano se caracteriza pela ideia do corpo comprometido com os fenômenos da natureza. Nessa perspectiva, nos colocamos na relação com as energias da natureza do cosmo de modo a vivenciá-las também no próprio corpo. Exu, rei do corpo, o que anima, embeleza e revitaliza. Para cada conjunto de célula que morre por dia, ele faz nascer outras tantas que nos mantêm a vida. É ele que mantém vivo nas pessoas o impulso para troca de afetos e o desejo de gozos para que jamais se acabe a vida na terra. É quando o ser de cada um exulta o prazer e a vida, Exu se move infinitamente sem a contagem inflexível do tempo que limitaria os movimentos do corpo. Exu é o que faz o jogo do universo e nele estão contidas as infinitas possibilidades como a aleatoriedade do movimento, a vagueza e a desorganização. Nele está contida também a turbulência que cada ser vive como um refazer contínuo da ação e do pensamento. São muitas lógicas onde "o bem e o mal é tudo igual". E aí, seria possível confiar neste orixá de todas as probabilidades? A resposta é provisória: o arbítrio é do domínio do ser humano. Exu faz o jogo do universo. É ele que encaminha pedidos: carregando as oferendas, mobilizando todo o processo de restituição do que é retirado e ingerido da terra, do rio, da floresta, do espaço urbano e das pessoas. Exu é um fractal que se integra continuamente. Ele que se divide e fica inteiro em cada ser, povoando todo o Aiyê (mundo natural) e todo Orum (mundo espiritual). Exu fez do mundo inteiro o seu banquete cósmico, engolindo tudo para, em seguida, vomitar renovado cada ser que é vivo. Isto justifica a compreensão de que Exu se firma no princípio de todo ser. Pulsante, ele corre os caminhos do mundo, os caminhos da vida e o caminho dos encontros amorosos. Anfitrião que não se põe apenas diante das porteiras convencionais. Ele está diante da porta do gozo por onde se concebe a vida. Está na porteira de onde brota a vida. Exu é a vida que brota em cada ser. É o que se divide, derrama e junta o que precisa ser juntado. Exu é o que vivifica e movimenta tudo que há no mundo. O que não se renova e não se recria continuadamente apodrece e morre. É preciso mover-se e se aquecer sempre para manter aceso o pavio da vida. Ele é o absurdo, é o sol que não deixa apodrecer o juízo.O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected]. >Veja outros artigos da coluna Olhares Negros